Duas mães denunciam o racismo, mas só uma delas é levada a sério
No Brasil, a cor do meu filho é a que faz com que as pessoas
mudem de calçada, escondam suas bolsas e que blindem seus carros.
Foi com estas palavras que a mãe de duas crianças negras
denunciaram o racismo estrutural e contemporâneo numa palestra em São Paulo. Ao
descrever de forma minuciosa as várias situações em que seus filhos podem ser
tidos como infratores ou marginais, a atriz Taís Araújo descosturou a ferida
mais hipócrita e fétida do Brasil; a clássica doença social da qual todos se
envergonham, mas que encoberta por diversos panos e disfarces tenta passar por
despercebida.
Aos 39 anos, a mãe de João Vicente e Maria Antônia chamou a
atenção de todos que pararam para ouvir a palestra “Como criar crianças doces
num país ácido”. Usando os exemplos mais íntimos que possui, seus dois filhos, alertou
que nem mesmo uma família formada por dois atores globais no auge de suas
carreiras está livre de passar pelos mais cruéis episódios de racismo.
Em menos de duas semanas, outra mãe denunciou um episódio de
racismo explícito cometido contra sua filha, uma criança negra de apenas três
anos. A atriz Giovanna Ewbank foi surpreendida por um vídeo com ofensas
racistas direcionadas à sua filha, gratuitamente. E embora a revolta e a
indignação sejam análogas, e embora as denúncias tenham sido feitas por atrizes
globais, apenas uma delas foi levada a sério.
A mãe negra
Taís Araújo, a convite do TEDx, ilustrou sua palestra com
exemplos pessoais para relembrar que não estamos livres do racismo. E mesmo
aplaudida de pé por muitos daqueles que acompanharam suas poderosas palavras
por vídeo, a atriz recebeu uma avalanche de comentários maldosos,
ridicularizando sua fala e relativizando sua denúncia. Ao dizer que a cor de
seu filho fazia com que pessoas mudassem de calçada e escondessem suas bolsas,
Taís declarou que o racismo pela cor da pele é uma realidade que não escolhe
condição social, sobrenome ou capacidade intelectual. Mas muita gente
interpretou seu discurso como uma hipocrisia vitimista, argumentando que os
filhos dela, cercados por babás, motoristas, empregados e recursos não estão
sujeitos ao racismo e a discriminação. Em suma, Taís Araújo teve sua fala
desmerecida, não apenas pelos comentaristas das redes sociais, mas pelo
Presidente da EBC, Laerte Rimoli, e pelo Secretário de Educação do Rio de
Janeiro, Cesar Benjamin. Segundo ele, o discurso da atriz é uma “idiotice
racial que prosperou”
A mãe branca
Quando um vídeo escabroso passou a circular pelas redes
sociais, menos de duas semanas após a palestra de Taís, o racismo contra uma
criança foi novamente tema da Internet. A pequena Titi, filha dos atores
Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso, foi chamada de “macaca” por uma pessoa que
sequer a conhece, e que já tem histórico de agressões gratuitas a crianças
famosas. Igualmente deplorável aos atos sofridos pelos filhos de Taís, as ofensas
contra a menina de três anos encheram a internet e as redes sociais de apoio a
seus pais, que denunciaram formalmente a autora do vídeo.
O que admira nos dois casos aparentemente semelhantes não é
a ação, mas a reação. Titi e João Vicente são negros; são crianças, e filhos de
figuras públicas. Ambos foram vítimas de racismo explícito, e ambos tiveram
suas mães como porta-vozes das denúncias de crimes raciais. Porém, apenas um
dos casos teve reconhecimento real de que o racismo é, de fato, um mal a ser
tratado. Giovanna Ewbank, ao contrário de Taís, não foi chamada de vitimista ou
mimizenta ao defender sua filha. Não foram criados memes ridicularizando a ela
e sua cria, e nenhum secretário ou presidente de empresa de comunicação tirou
um minuto de seu dia para expor nas redes o quanto ela era patética por
proteger sua menina. Ao contrário: uma maré de solidariedade e apoio, reforçada
maciçamente por artistas globais, apoiaram sua denúncia. O discurso de Giovanna
foi reconhecido, apoiado e digno de respeito, na chamada “solidariedade
seletiva”
As reações aos dois casos só fazem provar que o câncer do
racismo brasileiro está longe de ser extirpado, porque a sociedade recusa o
tratamento. Não há dúvidas de que as duas crianças sofreram racismo, mas apenas
uma delas teve sua reclamação reconhecida. E o que explica a diferença de
reações para Giovanna e Taís é, novamente, o racismo. O negro brasileiro está
terminantemente proibido de anunciar que sofre racismo, e totalmente
desautorizado a exigir um tratamento digno como ser humano. Quando ele aponta o
ato, expõe a situação e denuncia os indivíduos, sua fala passa por um filtro da
validação, e muito frequentemente é invertida em “implicância birrenta”. Quando
um negro afirma que sofreu racismo, brotam da terra os fiscais do discurso
legítimo para ressaltar “mas de novo essa história de racismo?”, “quem tem
racismo é o próprio negro!”, “o Brasil é um país mestiço, tanto brancos, negros
e morenos estão sujeitos a essa situação”.
O mesmo não ocorre quando quem denuncia o ato tem pele
branca, falando em nome de um negro. A solidariedade que comoveu a internet não
é pela Titi, mas porque seus pais, Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso, não
carregam na pele a cor da “vitimização”. E exemplos semelhantes chovem aos montes. O presidente da Bayer (branco) pasmou ao saber que seu amigo havia sido
dispensado de uma entrevista sob os dizeres “não entrevisto negros”. O mundo e
a mídia, no entanto, só se interessaram por essa história porque quem a
publicou não foi Jorge, o homem negro dispensado da entrevista, mas Theo, o
homem branco que comanda a Bayer no Brasil. Se Jorge tivesse feito um desabafo
sobre este episódio, seria apenas mais um negro “tentando chamar a atenção”.
O Brasil está longe de combater o racismo porque, no fundo,
ele não quer admitir que o racismo existe. Admitir sua existência é reconhecer
que há uma dívida a ser reparada, e que parte de sua reparação virá do
compartilhamento de privilégios. Com uma ironia que só os países de racismo
velado conseguem equilibrar, o problema é devolvido para o próprio negro: se
ele está sentindo racismo e se está sofrendo ofensas, não é por culpa da
sociedade, mas dele próprio. A mente dele é que está condicionada a só focar no
que é ruim e negativo, e que por conta disso, ele é incapaz de evoluir no
discurso e fica só nessa de racismo pra cá, racismo pra lá. Mas a verdade é
que, como sociedade, estamos muito mais próximos da moça que ofendeu Titi do
que imaginamos. Ainda que você não xingue ninguém de macaco, você desautoriza
aquele que não quer mais ser xingado de macaco. A solidariedade seletiva é
apenas um nome bonito para racismo sutil e adocicado que permeia toda a
sociedade brasileira. Seja verbalizando que uma criança parece um animal, ou
atravessando a calçada ao ver uma criança que identificamos como marginal, o
golpe é único, certeiro e real: é o racismo. E nenhuma pessoa, adulto ou
criança, que brade contra ele deve ser desmerecida. Só assim teremos força,
humildade e espaço para combater o racista enrustido que vive ali escondido,
dentro de nós.
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